terça-feira, 30 de outubro de 2012

Notícias de meu pai


Não leio jornal amassado.
Sofro quando alguém pega o jornal antes de mim. Faço questão de resgatá-lo do capacho para não sofrer ameaças.
Separo delicadamente os cadernos, pego minha xícara de zebra do café e viro as folhas com cuidado cervical.
É um dos meus melhores períodos da manhã. Estou ajustado ao tempo de meu pai como o pássaro no fio telefônico. Nada me separa do passado. Todo Transtorno Obsessivo-Compulsivo é uma vontade de preservar um amor antigo.
Eu briguei muito na minha infância com a figura paterna. Foram três anos de apelações e competições silenciosas, dos oito aos 11 anos.
Meu pai Carlos Nejar não tolerava ser o segundo na leitura do jornal. Só que ele transformava o papel em lixo em rápidas pinceladas. Desleixado, dobrava as páginas, derrubava manteiga, rasgava as manchetes interessantes, sublinhava trechos inquietantes, mudava a ordem das páginas, a ponto do jornal ao final aparentar a maquete de um castelo.
De suas mãos, o jornal vinha como um bolo de noiva — faltava somente a bandeja. A editoria de esporte namorava a de política, a de cultura se esfregava com a economia. Impossível uma criança ajeitar a numeração, pedia o trabalho profissional de uma bibliotecária.
Herdar a leitura do pai era uma calamidade. Isso quando ele não levava ao banheiro, aumentando ainda mais nosso índice de rejeição. Eu e meus irmãos tínhamos motivos de sobra para sermos analfabetos e desinformados do mundo.
Sensível com a ilegibilidade do papel, a mãe passava ferro. O esforço não compensava muito, a gramatura ficava ressecada, como livro de sebo. Com certeza, o jornal que embrulhava os ovos na cozinha estava mais conservado do que aquela edição do dia.
Por ódio à rotina, encampei a condição de desafiador da hierarquia familiar. A ovelha negra do rebanho do Nejar. Comecei a acordar mais cedo do que o pai.
O entregador deixava o jornal pelas 5h30, o pai levantava às 6h, eu me antecipei dez minutos.
Durante um mês, li o jornal primeiro. E ainda fazia a questão de oferecer algum suplemento ao pai para diminuir sua ansiedade.
Mas ele se antecipou aos meus dez minutos e recuperou sua realeza no mês seguinte.
Mas eu me antecipei aos seus dez minutos e controlei a pole durante quarenta dias.
Até que, sem percebermos, nos encontramos 5h20 da madrugada. Eu e o pai de pijama, juntos na varanda da casa, sentados na escada. Ambos se adiantaram demais à missão.
Quietos, nos emocionamos com o barulho do alvorecer nas calhas. Os cachorros cantavam no lugar dos galos, o vento serrava as fechaduras dos portões por novas chaves.
E acho que seguramos nossas unhas por alguns minutos nos frisos das lajes.
Pena que o entregador do jornal chegou e estragou nosso momento.

Fabrício Carpinejar, 24 de outubro de 2012.
http://carpinejar.blogspot.com.br/

Um comentário:

  1. Jornal amassado é algo que eu não leio.
    É terrível quando alguém ousa pegar o jornal antes de mim, faço questão de buscá-lo antes de qualquer contato com outras pessoas.
    Cuido para separar os cadernos, e para ler, pego minha xícara de café e folheio o jornal.
    Posso considerar este como a melhor hora da manhã, quando me sinto infiltrado na época de meu pai. Fico preso ao passado e todo o TOC é simplesmente a vontade de preservar um antigo amor.
    Durante três anos, desde os oito até os onze, briguei com meu pai.
    Ele, Carlos Nejar, não suportava ser o segundo a ler o jornal. Porém, ele conseguia deixar o jornal um lixo, em leituras rápidas. Derramava manteiga, dobrava as páginas, rasgava as manchetes interessantes, sublinhava alguns trechos, alterava a ordem das páginas. No final, o jornal parecia a maquete de um castelo.
    Era impossível de ajeitar as folhas depois que meu pai usava o jornal, ele vinha como um bolo de noiva onde só faltava a bandeja.
    Eu e meus irmãos poderíamos ser analfabetos se dependêssemos do jornal, já que as vezes meu pai o levava para o banheiro (o que aumentava nossa rejeição). Herdar essa leitura paterna era uma tragédia.
    As vezes, a mãe passava o ferro no papel, o que não adiantava muito, já que ele ficava ressecado. Os jornais que embrulhavam qualquer coisa na cozinha eram, com toda a certeza, melhores que a edição do dia.
    Procurei desafiar a hierarquia familiar. Comecei a acordar mais cedo que meu pai para pegar o jornal por primeiro.
    O entregador chegava aproximadamente pelas 5h30, o pai levantava as 6h. No entanto, acordei dez minutos mais cedo.
    Li o jornal por primeiro durante um mês e fiz questão de dar um suplemento ao pai para lhe diminuir a ansiedade.
    Certo dia, ele se antecipou aos meus dez minutos e recuperou o pódio.
    Porém, eu me antecipei aos seus dez minutos e tomei sua posição por quarenta dias.
    Um dia, porém, nos encontramos as 5h20 da manhã. Ambos na varanda da casa, esperando o entregador. Adiantamos-nos um pouco.
    Ao ouvir o som do alvorecer nas calhas, nos emocionamos. Ao invés de galos, cantavam os cachorros, e serrava o vento as fechaduras dos portões por nossas chaves.
    Acho que, por alguns minutos, seguramos nossas unhas nos frisos das lajes.
    Então chegou o entregador do jornal e estragou nosso momento. Que pena.

    ResponderExcluir